PARTE
1 – DE COMO NOSSA HISTORIA ESCAPOU POR
ENTRE OS DEDOS
Faz seis meses desde então,
e já nem me lembro mais como era me sentir feliz. É como se tudo isso tivesse
sido há muito tempo. Como se tivesse existido dentro de um sonho bom, que foi
interrompido bruscamente pelo som de um despertador qualquer.
Às vezes era assim que
parecia.
Pela janela de cortinas
cerradas do meu quarto, os dias passavam lentos, e a internet tornara-se minha
companheira fiel: Passava dias inteiros fazendo downloads de filmes pra
mascarar toda minha dor e solidão. O que parecia ser ironia do destino, já que
fora a internet o instrumento que me levara a ter, o que julgara ser, a
experiência mais sublime da minha vida.
Mas hoje isso também parece ter sido há
muito tempo...
As recordações me assombram
como velhos fantasmas conhecidos: Já não sinto medo delas. Vez por outra, me
agarro a elas como única chance de não abandonar o que inevitavelmente se
tornou passado.
E assim, também
inevitavelmente, as coisas seguem sua ordem. E não estava sendo diferente
comigo: quando dei por mim, minha vida havia seguido um rumo não planejado, e
contra a minha vontade, eu estava aprendendo a dançar conforme essa nova música.
O barulho da chuva lá fora
dita o ritmo da preguiça. O final de semana se espreme por entre o tiquetaquear
do relógio. A noite passada me fez relembrar sensações das quais estava me
forçando apagar das entranhas de minha memória. Talvez se não fosse aquela música...
Chovia noite passada: forte
e impiedosamente. O pára-brisa do meu carro - um pequeno Ford Ka® - tentava em
vão melhorar a visibilidade da estrada. As gotas de chuva faziam sombra em meu
rosto quando, por ventura, cruzava com algum poste de iluminação. Podia ver as
sombras correrem pelo meu rosto pelo espelho retrovisor.
A estrada estava completamente vazia. Tão
vazia quanto minha bolsa, meu estomago e meu coração. O carro, porem estava
cheio de um silêncio enlouquecedor e sufocante. Liguei o rádio no intuito
desesperado de me sentir em companhia de algo. Após o silêncio ser quebrado
pelo som da estática de algumas estações de rádio, ouve-se os acordes de uma música
tão baixa que mau se conseguia ouvir. Mudei novamente de estação e o carro foi
invadido por uma voz inconfundível. As batidas da bateria no compasso da música
pareciam camuflar meu coração descompassado.
A música era conhecida. A
letra havia decorado há muito. Porém meus lábios silenciaram.
Meus olhos viam, porem não
enxergavam a estrada. Era como se eu estivesse sob o comando de um piloto
automático.
Aquela música havia tomado
conta de meu ser, fazendo-me rever um filme já conhecido e tantas vezes
repassado.
Quando dei por mim. Estava
em frente à garagem de casa, com chuva amena no pára-brisa e lágrimas nos
olhos.
Ainda sob o comando do
piloto automático, enfio a chave na tranca da porta.
Trancada.
Chave errada.
Mais uma vez, e depois de dois giros a porta se abre. Joguei a bolsa no sofá.
Despejei as chaves no aparador próximo da porta. Ainda na sala, tirei as roupas
molhadas, fazendo uma trilha com elas até o banheiro.
Durante o banho, tentei me
refazer do acontecido. A água quente que saia do chuveiro, enchendo o banheiro
de vapor, não era suficiente pra conter meu corpo trêmulo. Minhas mãos ainda
estavam geladas, e meu coração apertado. Quanta coincidência em tão pouco
tempo!
Do espelho embaçado podia
ver um eu que não conhecia: mais velha, madura, mais dura, e com menos tempo
pras coisas que realmente me faziam feliz. Um eu que aprendera a viver
enxergando em branco e preto. Minha vida havia perdido a cor.
Visto um pijama qualquer e,
sem animo para secar os cabelos, deito pesadamente, me afundando no
travesseiro, desejando me fundir com a cama.
Tentei dormir, mas foi em
vão. Os pensamentos avançavam como ondas sobre a praia. Sentei na cama,
apoiando-me em uma pilha de travesseiros. O quarto estava quase totalmente
tomado pelo breu, se não fosse a luz artificial emanada de meu notebook a
tiracolo.
Fechei os olhos por um
pequeno instante que me pareceu eterno. Respirei profundamente enchendo meus
pulmões ao máximo, soltando o ar lentamente até ficar totalmente vazio. Repeti
isso mais algumas vezes, deixando-me ser invadida por uma avalanche de
lembranças, emoções, lágrimas e a decisão de enterrar tudo isso de uma vez.
Há seis meses eu estava
elaborando este maldito luto. Estava na hora de finalmente preparar-me para o
enterro. Assim, talvez, se tornaria mais fácil seguir a vida sem precisar
reviver dia após dias, em minha mente, todas essas lembranças que me faziam
sentir pena de mim.
Estava pronta pra escrever
um livro, e enterrar de vez essa história.